O cinismo-severino que assola o país

31 de março de 2005 O cinismo-severino que assola o país

Só hoje, passado um mês da eleição para a presidência da Câmara, consigo escrever sobre Severino Cavalcanti. Passei este tempo perplexa.
Não vamos minimizar o estrago que o nobre deputado ainda é capaz de fazer. É bom lembrar que o sofisticado Leon Trotsky desprezava a ameaça representada pela ascensão do bronco Joseph Stalin. Não que Severino tenha as pretensões de um Stalin, mas não se deve subestimar do que um tolo é capaz. Poucos dias depois de ter anunciado, num discurso cheio de lapsos de memória, a derrota do projeto eleitoreiro de aumentar o salário dos deputados, o novo presidente vingou-se com o golpe da elevação das verbas de gabinete. Vale mencionar Nietzsche: “os fortes que se protejam dos fracos”. Os ressentidos esperam anos e anos pelo momento de sair da toca.

Não sei quem seria o Trotsky, ou o “forte”, em oposição ao novo presidente da Câmara dos deputados. E não é certo que Severino, que abraçou seu quinhão de poder recém-conquistado declarando sentir-se “nos píncaros da glória”, seja um típico representante do ressentimento. Não há como analisar, à distância, o perfil psicológico de uma figura pública. Mas é possível prever que a ascensão inesperada de um político obscuro aos tais píncaros da glória tenha o poder de mobilizar os corações ressentidos de muitos que, como ele, esperam anos a fio recolhidos em sua mediocridade pelo momento certo de virar a mesa. É viável supor que cada pequena vitória contra a ética e o decoro, por parte do novo presidente da Câmara, conte com o apoio silencioso tanto de políticos quanto de cidadãos brasileiros que se identificam com a “vingança do baixo clero” que sua eleição representou.

Como se a existência de um “baixo clero” na política constituísse uma injustiça contra os obscuros e os medíocres, agora redimidos com a eleição de Severino Cavalcanti. Como se a falta de projeção de algumas dezenas de deputados eleitos pelo povo fosse culpa de seus colegas mais ativos, e não conseqüência de sua própria falta de projeto político, de sua própria atuação inexpressiva. O triunfo de Severino Cavalcanti, no primeiro momento, balançou algumas consciências politicamente corretas, como se fosse a correção de uma injustiça histórica. Discordo: Severino não foi um político obscuro, até fevereiro de 2005, por representar uma parcela humilde e pouco expressiva da população brasileira. Foi (e é, a meu ver) obscuro porque, eleito como representante de uma região humilde e pouco expressiva do nordeste brasileiro, pouco ou nada fez para melhorar as condições de vida de seus eleitores a não ser pela via dos privilégios concedidos à margem da lei a alguns conterrâneos, ou pela via do favor negociado em troca de votos. É por suas práticas atrasadas e anti-democráticas que o “baixo clero” é baixo, não pela origem humilde de seus representantes.
Alguns analistas políticos consideram com otimismo a sinceridade com que Severino admite o fisiologismo que sempre esteve presente em nossa democracia. Estranha estratégia derrotista de enfrentamento da privatização dos interesses públicos: é melhor que ela seja praticada às claras, para que o povo saiba com quem está lidando. Afinal, o que é melhor para o Brasil: o tráfico de influências envergonhado ou escancarado? A pergunta é por si só conformista, já que omite a única alternativa que interessaria ao país, que é a da ética na política. Além do mais, duvido que Severino Cavalcanti paute sua palavra pela virtude da sinceridade ao admitir abertamente que emprega parentes, que oferece aos deputados o que todo mundo quer – dinheiro, como não? – e que condicionará o encaminhamento das votações na Câmara a um troca-troca que beneficie seus protegidos. Ele revela o que outros escondem porque não considera que seja motivo de vergonha. Porque ignora, ou despreza, a dívida ética que o cargo público lhe impõe.

“Prefiro o racismo envergonhado dos brasileiros ao racismo despudorado dos americanos”, disse uma vez meu amigo brasilianista Matthew Shirts: “se os brasileiros têm vergonha de se declarar racistas é porque, pelo menos, a sociedade não os autoriza a isso”. O mesmo vale para o fisiologismo na política.O ideal é que seja banido; enquanto existe, que pelo menos a sociedade se envergonhe dele. Nossa democracia já é tão confusa – não vamos agora confundir transparência com pouca vergonha.

Assim sendo, eu me pergunto: o que é que, na nossa democracia, autoriza os severinos da vida a apregoar aos quatro ventos o que outros achariam conveniente esconder? Por um lado, o próprio governo autoriza, ao não tentar impor um outro estilo de negociar com o Congresso. Não adianta culpar os “300 picaretas”: eles sempre estiveram lá. O problema é que quando um governo que se elegeu em nome de ideais coletivos começa a deixar cair esses ideais sem prestar contas de por que está fazendo isso, o pragmatismo autoriza o cinismo e os picaretas deixam de, pelo menos, fingir dignidade. Votam pelos seus salários e ponto final. Que valor mais alto se levanta? Por outro, a sociedade também autoriza, ao confundir espírito crítico e conformismo. Dizer, com enfado, “o Brasil é assim mesmo”, não é sinal de consciência crítica. É conformismo, apatia, e – para quem se beneficia desse estado de coisas – cinismo.

Hoje pouca gente saiu de preto para protestar contra a “farra da Câmara”. Pode ser que a idéia ainda ganhe força: o movimento contra Fernando Collor também começou timidamente. Vale a pena tentar. Se a sociedade se deprime, ou desiste de cobrar as responsabilidades daqueles a quem delegou poder, não haverá força capaz de fazer da política uma prática ética.

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