AS RELAÇÕES DE TRABALHO E A NOVA SOLIDARIEDADE NO PÓS- PANDEMIA
Por Ranyelle Neves – graduanda em Direito e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.
As relações de trabalho e emprego e as medidas adotadas pelos governos em todo o mundo, em meio à pandemia do Covid-19, estão no centro do debate de como superar as bruscas modificações exigidas pelo isolamento social.
Não é de hoje que a organização dos meios produtivos determina as relações sociais e a disputa de hegemonias no globo.
Considerando isso, lançamos uma lupa crítica sobre aqueles que não têm ocupado nem de perto o top 5 das notícias e “twittes”, mas têm sido frontalmente atacados pela agilidade da pandemia e pela ineficiência do Estado “mínimo”.
Profissionais de saúde, limpeza, vigilantes, motoristas de transporte coletivo, coletores de lixo, varredores de rua e bancários são exemplos de profissionais que não deixaram de se encontrar nas ruas vazias do Brasil, em meio ao isolamento social. Em algum momento eles esbarram também com os ciclistas e motociclistas de aplicativos, sempre apressados para cumprir o horário de entrega da comida, da bebida, das compras de supermercado e até do remédio daqueles que puderam cumprir o “fique em casa”.
São esses os profissionais que ocupam as ruas e continuam garantindo o “funcionamento” da vida, enquanto milhares tentam cumprir as orientações da Organização Mundial da Saúde – OMS para o contenção do contágio pelo Covid-19 no Brasil.
Mas o que eles têm em comum?
Para responder a esta simples pergunta precisamos considerar as medidas econômicas e sociais que estão sendo adotadas pelo (des) governo brasileiro frente ao escancaramento da crise econômica e social que vive o Brasil e massacra o povo brasileiro, principalmente o povo mais pobre e a classe trabalhadora.
Em dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), em 19 de novembro de 2019, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),1 em cada 4 jovens entre 18 e 24 anos de idade encontra-se desempregado – 25% da população desta faixa etária, contribuindo para manter um índice de 11,8% da população brasileira no rol dos desempregados, ou seja 12,5 milhões de brasileiros só no último trimestre de 2019.
Para o primeiro trimestre de 2020, na esteira das políticas de austeridade e de desregulação das relações de trabalho e emprego, que a gestão do Ministro da Economia vem adotando, o IBGE divulgou em 31 de abril que o desemprego no Brasil chega ao patamar de 12,2%, ou seja, quase 13 milhões de brasileiros desempregados.
Dessa realidade podemos tirar algumas verdades. Primeiro, não foi a chegada do Covid-19 que instaurou a crise econômica, financeira e social no País, uma vez que, do Brasil do pleno emprego em 2014, com taxa de desemprego abaixo de 5%, fomos rapidamente lançados ao degrau dos milhões de brasileiros que tiveram seus contratos de trabalho extintos, largados à própria sorte e desamparados pelo Estado.
Segundo, não foi suficiente que, ainda em novembro do ano passado, mais de 12 milhões de trabalhadores estivessem desempregados, para que, sob o lema de “é preciso sacrificar direitos para garantir empregos”, o governo de Bolsonaro e Guedes apresentasse a Medida Provisória 905 – MP 905/2019, que realizava um novo e mais sangrento ataque aos direitos trabalhistas criando a “carteira verde e amarela”, restringindo direitos dos trabalhadores, como acesso aos 40% de multa referente a FGTS na dispensa sem justa causa e garantindo, claro, privilégios aos empregadores na celebração dos contratos.
Mas se ainda não ficou claro o que aqueles gloriosos profissionais têm em comum, vamos direto ao ponto: são eles e outros milhares – também invisíveis – cotidianamente atacados pela política genocida que vem se instalando na legislação trabalhista no Brasil desde as contra-reformas trabalhista e previdenciária. Por quê? Diremos em breves pontos.
A chamada reforma trabalhista, também conhecida como a Lei 13.467/2017, inaugurou aos brasileiros o que desde a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 não se fez com tanta facilidade: marcar a ferro e fogo os traços de neoliberalismo em nossas relações de trabalho e emprego. Explico.
Foi na reforma trabalhista que vimos flexibilizadas regras para celebração de contratos de trabalho, tornando norma escrita a terceirização para atividades-fim, o teletrabalho, a primazia do acordado sobre o legislado, a possibilidade de sobreposição do acordo individual sobre o acordo coletivo e a extinção da contribuição sindical compulsória, isso para iniciar. Tais pontos eram apenas o prenúncio do que viria e do que vivemos hoje no mundo do trabalho no Brasil.
Com o diagnóstico dos primeiros casos de contaminação pela Covid-19, e dada a necessidade de admitir o isolamento social para conter a contaminação que se alastrava rapidamente pelo mundo, vieram também as primeiras medidas de urgência frente à decretação de calamidade pública no Brasil por meio do Decreto nº 6, de 2020.
Dessa medida adveio o fechamento do comércio, bancos, indústrias, universidade e escolas além de outros setores. A educação básica, contudo, merece destaque nas medidas de isolamento, visto fechar mais de 181.939 escolas de educação básica, conforme Censo Escolar de 2018, com milhões de professores e estudantes sendo protegidos, evitando ainda a proliferação do vírus entre seus familiares e comunidade. Destaque se dá à importância de manter a suspensão das aulas presenciais neste momento delicado.
Mas não demorou para que alas do empresariado industrial e financeiro iniciassem uma campanha fervorosa exigindo novas medidas de financiamento das empresas: “a economia não podia parar” – entoavam. Assim, já são inúmeras as Medidas Provisórias que visam atender ao pedido dos empregadores, mas nenhum pedido dos trabalhadores e desempregados.
Assim destacamos a MP 927 e a MP 936, pois delas um novo lema surge: “é preciso sacrificar vidas para garantir empregos”.
É por meio dessas normas que vemos ser autorizadas a redução de jornada com redução de salários, a antecipação de férias forçadas, a suspensão de contratos de trabalho, o teletrabalho e a responsabilidade ao trabalhador pelos custos da produção, a suprema e irrestrita possibilidade de qualquer acordo individual ser celebrado sem a necessidade de obedecer às normas trabalhistas, aos princípios constitucionais e dispensando, sobremaneira, a presença dos sindicatos.
Com isso, assistimos diversas categorias de trabalhadores sofrendo com a instabilidade nas relações de trabalho e migrando da coluna dos empregados precarizados para a dos desempregados desamparados nestes quase 60 dias de pandemia. Na contramão do mundo, o governo brasileiro adota o “laissez-faire” e Estado mínimo para o povo e o intervencionismo para os bancos privados e empresas.
Aos trabalhadores que conseguiram manter seus postos de emprego, restou a exposição ao invisível inimigo, convivendo com a invisibilidade de suas funções e o trabalho à exaustão.
Daí, falamos dos profissionais de saúde que trabalham em plantões dobrados, sendo a categoria com maior índice de contaminação por Covid-19. Falamos ainda dos entregadores por aplicativo, aqueles que já desalentados pelo subemprego ou desemprego tem uma jornada média de 12h diárias, aos quais sequer há reconhecimento de qualquer vínculo de emprego com as “startups”, desamparados pelo Direito, mas a postos para satisfazer nossa chance de ficar em casa.
Por fim, não é possível fechar os olhos para os 804.538 de novos pedidos de seguro-desemprego entre março e abril de 2020, cerca de 150 mil a mais que no mesmo período de 2019. Tampouco é possível conceber que não se discuta a gritante realidade de necessidade que passa os mais de 90 milhões de brasileiros que solicitaram o auxílio emergencial de R$ 600,00, muitos dos quais não tiveram sequer acesso à primeira parcela.
São milhares de José, João, Maria, Consuelo, Antônio e Inácios que tem por longos anos sofrido com a subordinação nas relações de trabalho, invisibilizados em suas funções, que agora convivem com o alvo do desemprego e da precarização apontado para o peito.
Estamos acompanhando ataques aos direitos dos trabalhadores travestidos de medidas de contenção da pandemia, com a flexibilização de pautas importantes aos trabalhadores. Basta observarmos a quantidade de categorias submetidas ao home office neste período.
Será possível retornar aos postos de trabalho tidos como espaço de socialização e organização dos trabalhadores? Como se contrapor ao home office no pós-pandemia e voltar ao ensino nas escolas e ao atendimento nos bancos, por exemplo? Como voltaremos a exigir do empregador a responsabilidade pelos custos da produção? Conseguiremos estabelecer relações e normas garantam direitos no pós- pandemia? São indagações pertinentes.
Se estamos em tempos de disputar a hegemonia das ideias e com a oportunidade de fazer prospecções para as novas relações sociais, econômicas e de trabalho no mundo, que façamos começando pela construção de uma solidariedade entre os trabalhadores. Somente a solidariedade e a união dos trabalhadores nos permitirá avançar contra a falida racionalidade individualista – essência do neoliberalismo. Trabalhadores do Brasil, unamo-nos!
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