A nova moda na Casa Grande brasileira e arredores é avacalhar petista, petismo, PT. E a moda vai da extrema direita à extrema esquerda: moda é moda, e não depende de ideologia. É como sandália de dedo: se acomoda ao pé que a calça.
Mas a nova moda da moda é avacalhar Marilena Chauí. Primeiro, ela virou courinho da questão (aliás, muito mal colocada) do “silêncio dos intelectuais”. Depois porque ela falou e disse. Disse que a direita tinha ódio aos petistas, disse que o PT era o grande responsável pela democratização da sociedade brasileira, disse que “nós” (os petistas) “viemos para ficar”, “no pasarán”, que “eles não conseguirão acabar conosco”. Provavelmente foi esta última parte que provocou mais ódio.

Houve outras modas na Casa Grande brasileira. Em 47 era avacalhar comunista. Em 54, getulista. Em 64, petebista. Em 68, esquerdista. Em 70, guerrilheiro e exilado. Em todos os tempos, avacalhar o Brizola foi moda. Em 89, sobretudo no segundo turno, foi moda avacalhar o Lula, assim como em 94 e 98. Agora, na Casa Grande, não se avacalha o Lula; se despreza. Mas petista não: petista tem que ser avacalhado mesmo, para exorcizar o fantasma de que, de fato, não se consiga “acabar com esta raça”.

Pode-se discordar de Marilena, mas uma coisa é certa: ela pensa, e fala o que pensa. Marilena é clara no pensamento e na fala, e é uma professora brilhante, que pensa enquanto fala e fala enquanto pensa. Ouvi-la é sempre uma aula de pensamento. A gente diz, brincando, que se prestar atenção dá para ouvir o farfalhar dos neurônios.

Por isso ela irrita. E irrita mais ainda porque é mulher. Entre os comentários últimos surgidos, está o conselho de que ela deve se ocupar do que entende, isto é, o filósofo luso-judaico-holandês Baruch Spinoza, geômetra do pensamento e, por profissão, polidor de lentes, deixando a política para quem entenda dela. Esse conselho tem duas interpretações. Uma é de “o que está fazendo essa professorinha aqui entre gente grande”. A outra, mais sutil, é do tipo “já pra cozinha”, ou “já pro tanque”, “vá se ocupar dos seus trapos”, etc., destinada às mulheres que se metem com muita bulha no mundo dos varões (auto-) assinalados.

A punição a Marilena deve ser exemplar, e deve vir de todos os recantos: políticos, editoriais, colunistas sociais, cronistas de moda, etc. Ela deve ser desmoralizada, apresentada como uma espécie de corneta bufa do petismo e do Lula, em particular. O objetivo dessa desmoralização é a intimidação das pessoas e do pensamento, sobretudo da juventude, onde ela conta com mais admiradores.

O que os arautos da Casa Grande estão fazendo hoje com os petistas é similar ao que os romanos fizeram com os seis mil escravos sobreviventes da revolta liderada por Spartacus. Eles foram crucificados ao longo da Via Appia, para exemplo e escarmento. Aquilo era um aviso aos outros: “jamais ergam a cabeça”, porque se erguerem, verão o que estão vendo, e este será o vosso destino. O castigo tem de ser definitivo, e Marilena agora virou o nosso Spartacus: deve ser trucidada, seu corpo deve desaparecer na batalha, não deve restar nem cinza para os funerais.

Esse tipo de “vendetta” do ódio tem pernas curtas: logo a moda será outra, logo o Cristo ou Crista terá outra face a ser cuspida e coroada de espinhos. Mas o pior é que a semeadura deste ódio pode ser permanente entre os odiados. Muito petista já tem mania de achar que o PT é o pai, o filho, o espírito santo e a virgem Maria da esquerda brasileira, seu alicerce de fundação e seu telhado e torre de vigia. Esse ódio pode reforçar essa tendência, até porque ele se casa com o amargor com que ex-companheiros de esquerda agora nos olham e também proclamam o novo diktat de que “o PT acabou”, “não tem mais jeito”, etc., sem considerar que estão se suicidando com um tiro nas quatro patas: as do PT e as próprias.

Nada é pior do que a introjeção do preconceito pelo objeto do mesmo, seja sob a forma de projetá-lo sobre um terceiro, seja sob a de não enxergar mais nada e convencer-se de que se é vítima de perseguição por ser melhor do que os outros. Nada disso nos convém: temos de olhar a própria casa, nos convencermos de que se é verdade que “fomos traídos” pela caterva que destruiu a transparência no partido é também verdade de que “fomos distraídos”, para dizer o mínimo.

Vou terminar esta breve crônica adaptando a essa nossa circunstância, e como homenagem especial à Marilena, um poema de meu amigo québécois Gaston Miron, que tive a honra de traduzir para o português em priscas eras:

“Os homens restolhados” – isto é, olhados em seus restos.

Nós fizemos de mais longe do que nós
Uma viagem abracadabrante.
Há muito tempo nós não nos revíamos.
Eis-nos aqui em nós
Como numa casa que se fez em nossa ausência.
Olá, silêncio.

Nós não voltamos só para voltar.
Nós chegamos àquilo que começa.

Essa adaptação bem podia se chamar “Refundação”.

Fonte: Agência de Notícias Carta Maior