A crise política na revolução democrática

9 de dezembro de 2005 A crise política na revolução democrática

Frederic Jameson lembra uma observação de Saul Landau “de que nunca houve, na história do capitalismo, um momento de maior espaço para manobras: todas as forças ameaçadoras que ele gerou contra si mesmo no passado – movimentos trabalhistas e revoltas, partidos socialistas de massas, até os próprios estados socialistas -parecem estar hoje em um estado de total desordem, quando não efetivamente neutralizadas de uma ou outra forma. Por enquanto, o capital internacional parece ser capaz de seguir sua própria natureza e inclinações, sem necessidade de tomar as precauções tradicionais.”[1]

A direita brasileira, ao querer eliminar o PT, perdeu toda a precaução democrática.

As gestões atuais da esquerda em regra mimetizaram as políticas econômicas dos governos monetaristas neoliberais, com maior ou menor sucesso quanto à aplicação de políticas sociais compensatórias. Estas, aliás, são sempre necessárias para atacar a miséria extrema provisoriamente, mas quando são consideradas como estratégias integrantes de um modelo de sociedade sua tendência é fazer perdurar a subcidadania. A luta desencadeada, globalmente, pelas agências internacionais para a redução dos “gastos públicos”, visando garantir o pagamento dos juros (incidentes sobre as dívidas dos países pobres e “médios”) propõe reservar aos miseráveis apenas cotas mínimas de recursos, sem alterar as brutais desigualdades sociais que caracterizam estes países.
Parece certa a conclusão que nos dias de hoje “os governantes fazem pouca diferença. Não vivemos mais num mundo em que é preciso depor ou eleger um presidente, pois se encontrou um meio de esterilizá-los”.[2] O governo do Presidente Lula luta contra esta esterilização. O período que agora se abre é que vai definir o desfecho desta luta. Estado endividado, estrutura estatal sucateada, juros extorsivos e políticas sociais anêmicas, desigualdades inaceitáveis, compõem a situação “interna”, sobre a qual a experiência do governo Lula começou a ser engendrada.
As liberdades políticas sem efeitos sociais podem exaurir-se e comprometer a democracia como meio e como fim. Numa outra possibilidade, os direitos sociais conquistados juridicamente na modernidade, podem compor um novo elo da liberdade com a vida cotidiana do povo, não só para preservar a democracia como alargá-la. Se verdadeiras estas duas afirmativas, elas podem servir de base – no Brasil de hoje – para vincular a idéia de revolução social com a idéia de democracia.

A ausência de uma relação de causa-efeito entre as liberdades políticas e o bem-estar social pode reabrir o caminho ao autoritarismo. Seria possível, nesta direção, compor formas jurídicas andróginas de ditadura, mesmo dentro da Constituição democrática, a qual se tornaria uma simples moldura da força normativa do capital financeiro. O controle político da formação da “opinião pública” é um elemento que pode compor esta “relativização” da democracia como sistema político. O oposto é uma reforma do Estado “antineoliberal” que valorize o seu controle social, que modernize o acesso da cidadania as suas instâncias administrativas e decisórias e revalorize o espaço público.

A questão da democratização do espaço público, no qual os sujeitos sociais disputam os seus interesses (que devem ser contrastados) é o que pode se opor, democraticamente, ao domínio de uma mídia predominantemente antiesquerda e majoritariamente autoritária: constrói e destrói pessoas ao seu juízo, sem qualquer compromisso com a verdade, embalada ordinariamente pela disputa do mercado informativo de fazer a denúncia mais grave e de maior repercussão pública para ter mais leitores.

Para a esquerda não atada aos velhos esquemas das lutas políticas da segunda revolução industrial trata-se de buscar um caminho que vincule a idéia de justiça com a prática da liberdade plena, abrindo espaços para a reconstrução de uma nova cultura socialista, na qual o debate político de alto nível ocupa um papel fundamental.

A este processo chamo de “revolução democrática”. Ele só pode ser impulsionado pelos que necessitam dos direitos sociais modernos para viverem dignamente e pelos que não aceitam viver numa sociedade injusta, já idiotizada pelo reinado do consumo supérfluo, desmoralizada pela miséria absoluta e a insegurança generalizada.

A construção de uma sociedade com instituições políticas respeitadas e instituições econômicas que impulsionem para a redução das desigualdades não é uma utopia no sentido estrito. É uma “utopia realista” no sentido que lhe emprestou Bloch, que se opõe ao conformismo com a insegurança e defende que o “perigo” não leve à eternização do presente ou mesmo a sua decadência[3].

A “utopia realista” sustenta que as injustiças nunca serão totalmente suprimidas, mas é possível trabalhar para um bom futuro para todos, construindo uma resposta à barbárie neoliberal.

Vejamos alguns elementos desta desigualdade brutal no Brasil: “renda familiar mensal inferior a R$ 520 – 82.164.000 brasileiros (48% da população). Ensino médio: apenas 35% da população entre 15 e 17 anos; ensino superior: apenas 7,4% da população entre 18 e 24 anos. 40 milhões de domicílios registrados no país: 10 milhões são considerados insalubres (casebres, cortiços, favelas…), destes, 2 milhões não têm luz elétrica. Cobertura da Previdência Social: 61%, ou seja: 27 milhões de trabalhadores não têm seguridade social nem direitos trabalhistas. Os 10% mais ricos controlavam 69% da riqueza no século XVIII; 73% da riqueza no século XIX e 75% da riqueza no século XX[4].” É possível reverter este quadro.

A situação de atraso social dramático não sensibilizou um colunista de importante revista nacional[5], que propõe, em substituição ao governo Lula – um governo que se comportou como centrista e democrático -, reformas que possam “cortar aposentadorias, eliminar impostos, abater sindicatos, suprimir direitos trabalhistas, limpar o Judiciário e diminuir o peso dos políticos, enterrando boa parte das asnices de nossa Carta Constitucional”.

Não imaginemos que se trata de ironia. É um programa de agrado também da direita moderna, com respaldo no mundo acadêmico neoliberal e fortemente atraente para vastos setores das classes médias altas. Estas, aliás, têm enorme influência na formação da opinião e estão reforçadas, social e economicamente, pelo modelo atual.

Estas “reformas” fazem recordar a advertência de um intelectual do outro lado da história, Eric Hobsbawn: “Por que os ricos, especialmente num país como o nosso, no qual agora se rejubilam na injustiça e na desigualdade, se preocupariam com qualquer pessoa, exceto consigo próprios? Que penalidades políticas precisam recear se deixarem que a segurança social se desintegre e que a proteção aos necessitados se atrofie? Esse é o principal efeito do desaparecimento de uma região socialista, ainda que má, deste mundo”.[6].

Embora o estilo daquele articulista seja visto por muitos apenas como uma manifestação de desprezo e ódio ao PT e à esquerda em geral (“os lulistas resolveram que devemos nos render a todas as formas de bandidagem”, escreveu no mesmo artigo) o que ele propõe é a incriminação abstrata (dos “lulistas”) a toda uma comunidade partidária. Uma incriminação antecipada a todos os juízos legais, transformando em crime coletivo e partidário os delitos individuais de alguns dirigentes.

O artigo já referido é uma boa síntese do que vem sendo feito pela maioria (não pela totalidade) da grande imprensa, o que levou um jornalista insuspeito de simpatias pelo PT dizer: “Agora, parte da mídia começa a investir em algo inédito na história recente do país: o rancor de uma direita ultra-radical, tão maniqueísta, autoritária e primária quanto a esquerda xiita antes de chegar ao poder. Mas com uma diferença fundamental: o esquerdismo infiltrava-se em algumas redações, no enfoque de matérias, mas não se constituía em opção editorial.

Nesse período, o contraponto eram alguns expoentes de uma direita culta.Agora, na luta pela diferenciação, alguns colunistas e órgãos de imprensa passaram a investir -como opção editorial-, no radicalismo da direita inculta. São uma espécie de Severino Cavalcanti com roupas de grife, o exemplar típico da classe média emergente européia dos anos 20, descrito por José Ortega y Gasset (1883-1955) em sua “Rebelião das Massas”. De Olavo de Carvalho herdaram as fixações, não o brilho. Estão longe do cartesianismo brilhante de um Gilberto de Mello Kujawski, de um Oliveiros Ferreira, de um Miguel Reale. Usam a opinião como arma, com a sutileza de um halterofilista trinchando um frango em restaurante de luxo. Valem-se de estereótipos, da exacerbação do ódio em todos os níveis -seja para atingir um “inimigo” político ou para exprimir mera opção estética. Têm a certeza férrea dos ignorantes.”[7]

A MATRIZ TEÓRICA

Para investigar a matriz teórica desta direita, que hoje hegemoniza a oposição ao governo Lula, é importante lembrar que o Partido ainda não formatou de maneira convincente um projeto alternativo aos que faliram nos últimos trinta anos[8]. Inclusive como faliu a própria social-democracia, esgotada na “crise fiscal” do Estado de bem-estar. Mesmo sem recuperar, no plano teórico e programático um projeto convincente, é irrecusável, todavia, o caráter plebeu e radical-democrático do PT, que faz emergir na sociedade de forma visível as lutas dos pobres com as suas grandezas e deformações.

E é este caráter do PT que aguça a raiva dos adversários mais odiosos, cujo irracionalismo – como ação e discurso político – estão presentes no stalinismo e nas guerras étnicas, como estiveram no terrorismo nazi-fascista. Trata-se da incriminação insistente de uma “parte” genérica da sociedade, responsabilizando-a pelo “mal”, para formar um senso comum fechado ao argumento e à reflexão.

A acusação calcada no preconceito adquire força, quando consegue conectar-se com algum aspecto da realidade imediata, como foram os nossos erros. Para este tipo de ódio não é exigível nem reflexão nem fundamentação: apenas rejeição absoluta do outro, tido como diferente e responsável pelo “meu” amargor ou “minha” infelicidade.

Trata-se – em última instância – de alimentar uma negatividade que unifique contra algo estruturado e visível, para daí passar a cancelar o oposto que deve ser punido por existir.

Esse mecanismo de agregação política irracional já ocorreu em outras circunstâncias históricas contra a “outra raça” (no neonazismo), o “inimigo objetivo” (no stalinismo), os “comunistas” (em todos os tipos de fascismo), ou contra os democratas (quando há algo de desordem), e agora ocorre contra os petistas (que fizeram a desordem).

Depois da redemocratização e da Carta de 88, é o primeiro momento em que vários setores da direita, neo-ícones da decência e do espírito público – todos eles obviamente preocupados em “limpar” a nação – abrem de forma tão clara uma cruzada contra um grupo social organizado.

Já sem conseguir provar ou convencer a maioria da população que o PT é o novo demônio da pós-modernidade (os comunistas não são mais “perigo à vista”) e após anunciarem que “estávamos perante o maior processo de corrupção do Estado na história do país”, consignam um enorme desespero que aumenta a sua violência verbal. É a inconformidade com a ausência de provas – não sobre “financiamentos ilegais”, mas sobre “corrupção total do PT” e do seu governo – que agora se ampliou. Já buscam – assim – unificar-se pela inculpação das instituições democráticas “ineficientes”, que obstam a realização das suas provas. A ineficiência da democracia, como é sabido, sempre foi um argumento para defender a ditadura.

O ex-Ministro Jarbas Passarinho – firmatário do Ato Institucional nº 5, que implantou a ditadura total no país – e que chegou a assumir algumas posições de civilidade democrática logo após o fim do regime militar, agora volta à carga com todo o autoritarismo que havia contido. Ele vai ao limite de criticar, tanto o exercício pleno do direito de defesa de deputados acusados de financiamento ilegal, como impugna até o seu direito de manifestarem “insatisfação” com os caminhos técnico-processuais, já que recorreram à Justiça para terem os seus processos individualizados, direito que é uma conquista do inquisitório moderno.

Disse o ex-Ministro da ditadura: “Ganharam uma liminar sob o argumento de que não haviam tido direito de defesa, mas fugiram das citações, prova cabal de que só visavam a protelar a conclusão das CPIs e do Conselho de Ética da Câmara, firmemente dirigido pelo deputado Ricardo Izar. Não lhes servindo o artifício, voltaram ao Supremo para que os processos fossem individualizados e novo direito de defesa lhes fosse concedido, argumentando que isso lhes fora negado na Corregedoria da Casa.”[9]

Veja-se também uma parte da crônica de um dos mais considerados quadros da grande imprensa, num momento de desânimo cívico: “A cada dia que passa, a depressão aumenta. A resistência do PT/governo diante das evidências dos crimes cometidos está desmoralizando a imprensa, pois nosso esforço de buscar a verdade na maior crise da História republicana está batendo numa barreira de mentiras e caindo no vazio. Não tenho procuração para falar por ninguém, mas sinto um desânimo conformado, um ceticismo amargo nas colunas de colegas jornalistas.

Depois do vendaval de verdades que Jefferson jogou no ventilador, quando o povo viu por breves momentos a nudez da ópera bufa, como que olhando pela porta de um bordel, as cortinas foram se fechando com habilidade e, aos poucos, os velhos lugares-comuns voltaram: ‘Tudo acaba em pizza, sempre foi assim, eu já sabia e o país não tem jeito’. Trata-se da progressiva vitória que os stalinistas e cobras criadas do Poder Central, ajudados por artes jurídicas e legislativas, estão conseguindo: fazer tudo voltar a zero”.[10] Mais um ataque à ineficiência da democracia que não permite eliminar o outro que sem nenhuma dúvida deve ser cancelado.

Registre-se: Roberto Jefferson, a fonte inspiradora da “limpeza” moral no país, segundo o referido intelectual, já foi cassado por ter ferido o decoro parlamentar. Registre-se: a inconformidade do cronista é porque as três CPIs (são três!) não provaram nada, além das ilegalidades no financiamento da campanha (que o PT já reconheceu e que os partidos sempre operaram). Registre-se: a Polícia Federal do país nunca combateu, como hoje, o crime organizado, os crimes fiscais e os crimes do “colarinho branco”, ao contrário do que ocorria no governo anterior. Registre-se, finalmente: o Presidente do PSDB, partido do ex-Presidente Fernando Henrique, já reconheceu que o seu partido adotou os mesmos métodos de financiamento de campanha e já renunciou à presidência do PSDB.

A síntese de todos estes ataques não é a defesa de um programa, sequer de combate à corrupção ou da defesa de uma reforma política, mas uma tentativa de descredenciamento absoluto da esquerda como possibilidade política e do PT em particular, para que ele passe a ser visto como inventor da corrupção e da imoralidade pública no Brasil.

Os acusadores em regra são simpáticos aos mesmos setores tucanos e pefelistas que impediram a instalação de CPIs, que investigariam graves fatos, possivelmente delituosos do governo FHC. Um Senador da direita mais predatória do Estado brasileiro chegou a dizer, entre feliz e incontido, que os fatos em curso permitiriam “nos livrar desta raça por trinta anos”. A “raça” é o PT. (Os nossos erros deram à direita conservadora e neoliberal a oportunidade de uma absolvição política sem processo político, além de permitir-lhes uma unidade conveniada no cinismo: o ex-Presidente FHC chegou a dizer que a corrupção no seu governo não deveria ser investigada porque ela “já era história”.)

Mas comparemos, antes de prosseguir, alguns dados do governo Lula e do governo FHC: crescimento de 4,9% do PIB e de 3,7% do PIB per capita, maior taxa desde 1994; incremento da produção da indústria (+6,2%), agropecuária (+5,3%) e serviços (+3,3%); aumento de 4,1% no consumo das famílias; pela primeira vez, após mais de uma década, foram alcançados resultados positivos nos principais indicadores da economia: saldo em transações correntes, crescimento do PIB e superávit primário do governo.

Continua o crescimento do emprego industrial (8,1%) e do salário real na indústria (16,4%) entre jan/03 e mar/05. Extinção de empregos: – 1992/94: 326,5 mil empregos – 1995/98: 1,02 milhão de empregos; criação de empregos entre: – 1999/2002: 1,8 milhão de empregos; – De jan/2003 jun/2005, o país gerou 3.135.012 novos empregos formais.
Qual o objetivo, então, desta raiva programada, reproduzida generosamente pela grande imprensa brasileira, se no terreno do desenvolvimento e da estabilidade o governo atual é reconhecidamente “melhor” do que os anteriores? Não é muito difícil perceber onde querem chegar.

O objetivo é, em primeiro lugar, por motivos eleitorais sufocar a lembrança do que foi o governo FHC. Para que isso ocorra é necessário incriminar, não somente as pessoas que erraram, mas a coletividade política que elas integram e que era a fonte mais forte de oposição a FHC. Em segundo lugar, buscam reduzir a eficácia da defesa política que possamos fazer, jogando as nossas razões e os nossos erros para “fora da História”: se nós ficarmos “fora da História” – ilegalizados – sua hegemonia será duradoura e sem oposição forte. Para o seu padrão democrático o ideal seria que o PT, não só não se defendesse, mas se autoextinguisse, pedindo desculpas por ter sido fundado.

Que lição importante já podemos imediatamente tirar da crise?

Nosso compromisso coletivo e individual com a ética.
A ética pública deve adquirir para a esquerda um estatuto ainda mais relevante do que simplesmente a defesa de uma moralidade jacobina no exercício do poder governamental.

Como a margem de manobra do grande capital – via sistema financeiro – pode se dar o luxo de operar como uma força normativa mais forte do que as instituições jurídicas do Estado, a corrupção torna-se uma arma extraordinária para distorcer as instituições de uma forma ainda mais aguda. A corrupção, neste quadro histórico, só é aceitável para operar como força política orgânica para uma nova retomada das reformas neoliberais, como aliás já ocorreu durante as eras Collor e FHC. À medida que ela se torna uma característica, agora estruturante das reformas conservadoras, o combate à corrupção deve, para nós, adquirir prioridade. Isso significa refundar uma concepção de ética pública combinada com um projeto de nação.

Se a ética pública já era importante para a esquerda, embora esta nunca lhe tivesse dado o devido relevo, hoje ela se torna uma questão programática de fundo. Cabe por inteiro a preocupação de Gianfranco Pasquino:“Para começar, a política democrática, ao menos no que se refere ao financiamento das atividades políticas, deve prestar contas às leis existentes e não pode reclamar nenhuma autonomia, nenhuma exceção à regra (…). Em segundo lugar, não deveria existir na política democrática a distinção entre aceitar financiamentos pessoais ilícitos e aceitar financiamentos ilícitos para o próprio partido ou, mais grosseiramente, entre roubar para si mesmo e roubar para o partido ou qualquer outra organização que apresente candidatos às eleições. (…) debería considerar-se muito mais granve roubar para o partido a que se pertence que fazê-lo para o próprio enriquecimento pessoal.”[11]
Adotado este critério formal a esquerda poderia impulsionar uma nova cultura política interna aos nossos partidos, para que eles não façam o que é “normal” para os demais e, assim, possamos colaborar para a construção de uma ética pública não tolerante com grandes ou pequenas amoralidades. Poderíamos, desta forma, fundamentar com mais racionalidade o compromisso “que a democracia não é resultado mas condição sine qua non de toda a trajetória histórica, na qual a dominação e a exploração são reduzidas e erradicadas. Em outros termos: a democracia é condição sine qua non de uma revolução social.”[12] Não é possível aceitar que só uma sociedade nova pode construir uma nova moralidade pública, mas ao contrário, o correto é agir para que uma nova moralidade pública seja condição para a construção de uma sociedade melhor.

A crise na história

Sem entrar num debate mais complexo, que envolve distintas concepções sobre a revolução social no Brasil, é possível afirmar que o país sofre, não somente uma estrutura sócio-econômica injusta, mas também tem um enorme “déficit” democrático em suas instituições políticas.

De outra parte, também não é polêmico dizer que a experiência democrático-republicana do país é pequena: desde 193O -ano do início de uma revolução modernizadora de sentido nacional-desenvolvimentista- tivemos, na verdade, apenas pouco mais de 20 anos de democracia política plena. Ou seja, o que se entende por democracia moderna no país tem pouco tempo de “uso”. É uma breve experiência institucional de baixos resultados positivos, em termos de promoção social, para as camadas assalariadas de renda baixa ou simplesmente pobres.

Os governos autoritários -Vargas (193O-1945) e um curto período do regime militar ( vigente entre 1964-1988) – foram os momentos que mais “melhoraram” a vida das camadas sociais mais empobrecidas da população, no curso do desenvolvimento do capitalismo moderno. O primeiro período veio pela consolidação da legislação trabalhista e pelo salário mínimo; o segundo originou-se do crescimento acelerado da economia por um certo tempo, época (1968-1973) em que o país alcançou baixas taxas de desemprego. Tal modelo foi esgotado rapidamente pelo encarecimento dos financiamentos externos, impulsionados pela primeira e segunda crise do petróleo.

Os oito anos do governo Fernando Henrique – anos de consolidação do regime democrático inscrito na referida Constituição de 88 – agravaram, porém, os problemas sociais do país. Foram anos de concentração ainda maior de renda e elevação dos juros à estratosfera. O crescimento econômico foi medíocre e aumentou a nossa dependência ao aporte especulativo de recursos para financiar a dívida pública.

Além disso os governos FHC promoveram a privatização “selvagem” de ativos públicos (financiada por recursos públicos), consolidando esquemas de corrupção sistêmicos no Estado brasileiro. Ao mesmo tempo foi quadruplicada a dívida pública e aplicado um brutal arrocho salarial nos servidores públicos.

Nos anos FHC, portanto, que foram de consolidação da democracia política, socialmente e economicamente o país piorou. Esta contradição aumentou o estranhamento entre a democracia e melhores condições de vida da ampla maioria do povo. Em termos sociais os governos FHC são governos democráticos “thermidorianos”. Neles não foi estabelecida, por exemplo, qualquer “ponte” entre as instituições democráticas republicanas e os movimentos sociais, visando integrá-los na lógica democrática e na esfera política com legitimidade.

Ao contrário, quando FHC decretou a extinção da “era Vargas” – como ele mesmo verbalizou – queria dizer que se abria uma era de extinção de direitos sociais e não de reordenamento jurídico e institucional dos direitos dos trabalhadores e dos pobres. (Aliás, sequer a esquerda respondeu este desafio, que ainda deve ser decifrado, numa situação de dominação mais complexa do capitalismo financeiro globalizado, sustentado por transformações radicais no mundo do trabalho e nos processos de produção.)

FHC queria dizer naquela ocasião, portanto, “redução das tutelas sociais” e não “novas tutelas”. Num mundo de intensificação da exploração onde a precariedade e a intermitência repõem, num novo contexto, a acumulação pela apropriação da “mais valia relativa” (pelo crescente aumento da produtividade) combinada com novas formas de exploração da “mais valia absoluta” (pela redução real do preço da massa salarial), tratava-se – segundo ele – de “preparar o país para a globalização” [13].

Não há ainda no nosso país, portanto, uma mínima identidade, na consciência do cidadão comum, entre democracia e melhoria social, entre democracia e transição massiva (ou mesmo “molecular”) de baixo para cima, na estrutura social. Para a ampla maioria do povo democracia não que dizer vida melhor. Não há também, como conseqüência, a consciência de que uma vida melhor duradoura só pode ser conquistada dentro da democracia: na “revolução social” como processo democrático e republicano.

A emergência de novas formas contratuais, feminilização da mão de obra, exploração dos expatriados pela fome, falsa autonomia na prestação de serviços visando precarizar contratos, “terceirizações” e “quarteirizações” para diluir os “gravames” sindicais, trouxeram duros reflexos aos países do “segundo” e “terceiro mundo”. Eles, obviamente, precisam rapidamente baratear os custos totais de produção para ter capacidade de ocupar algum espaço no sistema mercantil global. Mas, hoje, mesmo a social-democracia mais moderada já reconhece as extremas dificuldades que vieram no bojo das reformas neoliberais[14].

A situação conjuntural do governo Lula

Os impactos positivos e negativos, que a chegada ao governo de um partido como o PT promove numa sociedade historicamente autoritária e elitizada não podem ser relegados. A questão social no Brasil é gravíssima e se é verdade que o Estado, aqui, precedeu a própria idéia de país – face ao “implante” estatal promovido pela colonização portuguesa – a efetividade dos direitos sociais da modernidade só passou a ter reconhecimento a partir da década de 50. A partir dali, tentativas de ampliá-los foram frustradas, principalmente com o golpe de 64 e depois com a eleição de Collor em 89. Os duros ataques que o PT e o seu governo vem sofrendo – nesta data há mais de quatro meses – não podem ser desvinculados da questão democrática no país e das grandes questões sociais e institucionais que vivemos.

O governo Lula, com as suas ambiguidades e contradições, não é um governo democrático “thermidoriano”. Quando o Presidente nega-se a compartilhar da criminalização dos movimentos sociais, proposta pela direita tucano-pefelista e por setores da imprensa; quando faz o pequeno gesto “simbólico” de colocar na sua cabeça o “boné” do MST ; quando promove emergenciais distribuições diretas de renda “via ‘ Estado (bolsa-família); quando se propõe a abrir a universidade para os pobres (massificação de “bolsas” para os pobres freqüentarem as universidades privadas e expansão das universidades públicas); quando visita acampamentos e assentamentos dos “sem terra”; quando recebe no Palácio, não somente banqueiros e industrias, mas também a CUT, as demais centrais sindicais e o MST, para negociar pessoalmente as suas demandas; quando triplica o financiamento da agriculura familiar através de créditos subsidiados; quando susta as privatizações e revaloriza as instituições estatais de crédito, a indústria naval e a Petrobrás; quando remete uma Emenda Constitucional para o Congresso para fazer o maior aporte de recursos, para a educação básica pública, na história do país; quando cria condições sociais e econômicas para a retomada do aumento real de salários e aumenta a oferta de emprego na indústria; certamente o Presidente e o seu governo não estão cumprindo o “programa máximo” da esquerda democrática. Nem o “programa mínimo” da ultra-esquerda autoritária. Mas, seguramente, é um governo que começa a retomar os princípios básicos da revolução democrática inconclusa no país: integrar num só processo afirmação da democracia e medidas concretas para melhorar, a curto e médio prazo, a vida dos pobres, num país em que os pobres e os miseráveis são a ampla maioria.

Na verdade o que mais desperta objeção dos nossos adversários não são as ilegalidades e a corrupção, pois se assim o fosse já teriam desistido das suas próprias preferências partidárias. O que mais lhes irrita é a emergência na cena pública, com autoridade, prestígio e poder de mando, dos sindicalistas, dos líderes de movimentos sociais, de quadros políticos originários da classe média baixa – muitos até “deslumbrados” com a sua nova situação – todos os que formam, para eles, uma espécie de ralé republicana que, além de tudo, não reprime o MST.

O que mais lhes irrita é esta mistura canhestra que dá um passo, ainda que capenga, no sentido da revolução democrática, com pessoas que jamais chegariam a influenciar os destinos da república, se não fosse pela eleição de Lula e pelas esperanças que a sua liderança despertou.

Há seguramente uma questão estratégica de natureza democrática e socialista, na questão do crescimento, do emprego, Na “vida melhor” dentro da democracia, Na criação de melhores condições educacionais e culturais para o povo num país socialmente fragmentado, de estrutura social dispersa, onde rapidamente os excluídos e semi-excluídos (de fora da estrutura formal de classes) tendem a tornar-se maioria em relação aos “classificados”. Trata-se da construção de um novo “bom senso comum” que absorve que é um desenvolvimento social equilibrado e inclusivo que recria os sujeitos sociais que podem vincular-se à idéia da democracia e do emancipação. Trata-se da compreensão de que a barbárie neoliberal só reproduz mais barbárie e que a “desclassificação” da sociedade só cria sujeitos ativos ou passivos da barbárie: banditismo, tribalismo marginal, espírito de turba, autoritarismo policial e mais direitização ideológica dos incluídos, inclusive das classes trabalhadoras empregadas.

Este processo perverso de informalização e exclusão, tanto pode gerar idéias autoritário-fascistas, como idéias supostamente revolucionárias, centradas no poder absoluto do Partido investido do messianismo classista. Este, aliás, resulta no que já resultou.

A grande questão teórico-metodológica que está no centro do debate sobre a revolução democrática é, pois, a questão da reprodução consciente dos sujeitos possíveis da democracia e do socialismo, que não emergem de um mero curso “natural” da história. Só podem surgir de uma reinvenção humana consciente da vida em geral e da política em particular, pois só a natureza evolui através de um processo sem sujeito, a história não.

Por isso o desenvolvimento, o crescimento acelerado da economia, a inclusão das pessoas nas classes sociais e no jogo de civilidade democrática são processos constituintes da nação, da democracia e da utopia. A reinvenção democrática hoje passa pela constituição dos sujeitos da reinvenção democrática, que só podem “esclarecer-se” a partir de transformações econômicas, institucionais e culturais de longo curso, para as quais o governo Lula é o início de uma experimentação que não pode ser revogada.

Nem pela cruzada falsamente moralista da direita conservadora ou neoliberal, nem pela eventual impotência de um partido que hesita em renovar-se e aprender as lições duras da História.

[1] JAMESON, Frederic. “Espaço e imagem – teorias do pós-moderno e outros ensaios”. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 3ª edição, 2004, p. 64.

[2] FIORI, José Luís. “Os moedeiros falsos”. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 109.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. “A queda do Angelus Novus: Para além da equação moderna entre raízes e opções”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: maio 1996, nº 45, p. 31: “Estamos num momento de perigo que é também um momento de transição. O futuro já perdeu a sua capacidade de redenção e de fulguração e o passado ainda não a adquiriu. Já não somos capazes de pensar a transformação social a partir da equação entre raízes e opções, mas tão pouco somos capazes de a pensar sem ela. O perigo reside na eternização do presente e na sua capacidade de fulguração kafkiana.”

[4] Dados do Censo 2000, Pesquisa Amostra de Domicílio do IBGE, 2002, publicados na coleção Atlas da Exclusão Social, Editora Cortez, São Paulo, 2004. Publicado na Revista Carta Capital, nº 360, ano XII, 21/09/2005, pp. 34/35.

[5] MAINARDI, Diogo. Revista Veja, 19/10/2005, p. 165.

[6] HOBSBAWN, Eric. “Tempos interessantes – Uma vida no século XX”. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 310.

[7] NASSIF, Luís. “A volta da direita inculta”. In: jornal Folha de São Paulo, 16/10/2005, Dinheiro.
[8] ELEY, Geoff. “Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000”. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2005, p. 465: “Entre 1970 e 1990, dissolveram-se na Europa as bases para os movimentos socialistas do tipo clássico, o que significou não apenas o fim das antigas solidariedades de classe, mas também do capitalismo industrial subjacente a elas – concentrações de fábricas e pequenas oficinas de produção mecanizada; trabalho manual pesado nas minas e metalúrgicas; portos, ferrovias e sistemas de transporte urbano intensivos em trabalho; complexos de produção de massa enormes e ramificados, organizados nas grandes cidades, províncias carboníferas, cadeias de cidades industriais e cidades dependentes de uma única indústria. Depois de dominar a sociedade européia entre as décadas de 1880 e 1960, esse cenário agora lentamente desaparecia. Desmontaram-se também as infra-estruturas governamentais da reforma socialista, desde as soberanias do Estado parlamentar e da economia nacional até os recursos comunitários urbanos do governo local. A auto-organização coletiva, os ideais de melhoria, a vida nos clubes, uma ética de progresso coletivo e de bem comum – essas culturas de apoio do socialismo também naufragaram. As masculinidades resilientes do movimento trabalhista também se tornaram objeto de mudança, desde o patriarcado dos lares operários até as práticas discriminatórias de gênero dos sindicatos e partidos e o inveterado sexismo dessas organizações. As premissas indiscutíveis da tradição socialista, sua axiomática orientação política de classe, perderam a validade.”

[9] PASSARINHO, Jarbas. “Quatro meses que abalaram o país”. In: jornal O Estado de São Paulo, 18/10/2005, Espaço Aberto, A2.

[10] JABOR, Arnaldo. “Hipocrisia tenta anular imprensa brasileira”. In: jornal O Globo, 18/10/2005, segundo caderno, p. 8.

[11] PASQUINO, Gianfranco. “La democracia exigente”. Madrid: Ciencias Sociales – Alianza Editorial, 2000, p. 45.

[12] QUIJANO, Aníbal. “Sistemas alternativos de produção?” In: Produzir para viver – os caminhos da produção não capitalista. Baoventura de Sousa Santos (org.). Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira, 2002, p. 511.

[13] O texto de José Pastore deixa claro o significado deste processo reacionário: “Tudo está sendo renegociado. Os salários encurtam e as jornadas alongam. Os benefícios diminuem e as negociações são mais flexíveis. Os exemplos são eloqüentes. Em face da ameaça da transferência de uma grande fábrica do Opel para a Polônia, os sindicalistas alemães concordaram com um congelamento de salário e benefícios até 2010. Além disso, negociaram trabalho à noite, aos sábados e aos domingos. Empresas como a Siemens e a Bosch renegociaram seus contratos de trabalho, ampliando a jornada semanal de 35 horas para 40 horas – sem aumento de salário -, em troca do compromisso de as fábricas ficarem na Alemanha até 2012. Os sindicatos sabem que, se não cooperarem, as fábricas vão embora, deixando para trás os desempregados e os sindicalistas. O interessante é que toda essa revolução das relações de trabalho está ocorrendo de baixo para cima, ou seja, do contrato para as leis, sem nenhuma restrição. Bem diferente é o caso do Brasil, onde nada pode ser modificado nos contratos de trabalho porque a Constituição Federal e a CLT impedem. Até quando vamos conseguir competir no mundo globalizado com tamanho constrangimento legal?” PASTORE, José. “Revolução trabalhista na Europa”. In: Jornal O Estado de São Paulo, 23/08/2005, Caderno de Economia, B2.

[14] GRAÇA, Eduardo. “A incrível pobreza americana”. In: Jornal Valor, caderno de fim de semana, 16, 17, 18 de setembro de 2005, p. 7: “Enfrentando uma eleição dificílima na Alemanha, o chanceler social-democrata Gehard Schroeder resumiu assim, em um debate esta semana, sua proposta de política social para os próximos anos: “Exatamente o oposto do que os americanos estão fazendo. Já é tempo de fortalecer novamente o Estado. O uso exclusivo de políticas pró-crescimento é criminoso e leva a tragédias como as da Louisiana”.

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